Desvios
René Crevel viveu apenas 34 anos, deixando-nos poemas, romances, textos soltos, loucos. O suicídio acompanhou-o desde sempre, como se algum dia fosse inevitável realizá-lo, e anuncia-se logo neste seu primeiro romance, Desvios, cabendo nele a descrição de um gesto que terá, 11 anos depois, a forma que o próprio Crevel escolherá, juntando um bilhete ao corpo: «É favor de me incinerar. Repulsa.» Desvios é, no entanto, e ao mesmo tempo, um romance de uma alegria tresloucada (até nas passagens mais melancólicas) e que parece estritamente ligada ao acto de se contar uma história. Seduzido pelo Surrealismo e por Breton, há quem queira ver numa posterior desilusão com este o motivo para a sua derradeira escolha, outros vêem-no na consciência da sua tuberculose avançada, mas o facto é que esse desvio da linha da vida marcou-o precisamente nela: aos 14 anos, vê o pai enforcado, levado pelas mãos da própria mãe, que lhe quis mostrar a cobardia do acto. É provável que Crevel tenha visto outra coisa. Bissexual assumido, o sexo, nos seus jogos e frustrações, é uma das cores na paleta de Desvios, que, embora usando os mesmos pincéis da literatura que o fundamenta, assume a rebeldia no traço, na forma, na força com que representa, rasgando se for preciso a tela. É jovial, desestabilizador, terno e angustiante. «É um livro romântico», dirá numa carta a Paul Éluard, «como o seu autor».
Traduzido do francês por Diogo Paiva
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As Irmãs Brontë, Filhas do Vento“Em Outubro de 1929, Crevel [1900-1935] está deitado ao pé das pinturas de [Marie] Laurencin, transportado aos 1263 metros de altitude do sanatório de Leysin. Não o deixam sair, porém, da cama de rodas empurrada até à janela para observar um voo de corvos suíços que têm, diz ele, as patas vermelhas. Nestes dias lembra-se de ter prometido a Marie um texto sobre as irmãs Brontë, para ela ilustrar. Crevel admira estas virgens do Yorkshire, perturbadas por sonhos violentos e embriagadas com vento; aquele irmão, bebedor de whisky e suco de papoila, incapaz de se refrear perante tudo o que mais ama.[…]Capaz de transtornos surrealistas na vida de um sanatório e num romance, cem anos antes o vento perturbara com o seu vinho as três virgens expostas às correntes de ar do Yorkshire. René Crevel pensa sobretudo em Emily, autora do meteoro conhecido em português por O Monte dos Vendavais, no seu irmão Patrick Branwell, tocado por uma perversidade estranha aos bons comportamentos do presbitério de Haworth, e que nunca soube levar a fecundas exaltações o seu paraíso artificialCrevel via corvos com patas vermelhas mas pensava nas irmãs Brontë. Escrevia Filhas do Vento, que a eficiência de Marie Laurencin fez aparecer três meses depois nas Éditions des Quatre Chemins, acompanhado por cinco litografias suas, e com o destino evidente das mãos dos bibliófilos da capital, os que fossem capazes de apanhar a tempo um dos seus escassos cento e vinte e cinco exemplares.” Aníbal Fernandes -
A Morte DifícilNa nossa família suicidamo-nos muito.«Nove anos antes deste acto incompreensível [o suicídio] — se o não aceitarmos como momento de um muito complexo desespero — René Crevel escreveu o seu terceiro romance e chamou-lhe A Morte Difícil; a morte que viria, anos mais tarde, a responder na vida real à mais nocturna face da sua condição de homem. E fê-lo com o seu surrealismo de vocação refreado até às exigências de uma grande clareza autobiográfica.Crevel retrata-se aqui como um homossexual assombrado pela ameaça genética do pai louco e pelo comportamento de uma mãe cruel e frívola; dividido por verdadeiros desejos físicos e outros que uma ambígua relação feminina muito imperfeitamente disfarça; um jogo de bem calculada progressão no tom — o que fervilha num primeiro capítulo com humorísticas ironias e se esvai aos poucos pelas sombras de um estado físico e psicológico que se destina, em noite fria e num banco público, a acompanhar o desespero do seu fim.Crevel receava, porém, que as exigências deste programa se cumprissem com excessiva exposição de realidades muito evidentes para os que mais de perto o rodeavam, e prejudicassem, incomodassem ou até envergonhassem os que eram modelos das suas personagens.Que Madame Dumont-Dufour surgisse como inegável e talvez piorada versão da sua mãe burguesa, não era para Crevel um problema; [...] mas havia o caso de Arthur Bruggle, que era impossível não ser colado ao seu amante americano Eugene McCown (a quem chamavam Coconotte ou Eugénie), saído de Kansas City e que desembarcara na França em 1923 com vontade de se usar e desbaratar para vencer nos meios intelectuais e mundanos de Paris. McCown era pintor e pianista de jazz; pintor aceite por importantes galerias de Paris, jazzman com muito êxito nas sonoridades hip-hop que enfeitaram as noites do café Le Boeuf-sur-le-Toit. [...]Crevel acabou por mostrar o texto de A Morte Difícil a McCown; e, perante a desagradável reacção que ele provocou no retratado, decidiu-se a acrescentar-lhe o curto capítulo final, suavizador [...].»Aníbal Fernandes -
BabilóniaO seu primeiro romance Détours (N.R.F., 1924), uma obra, um retrato (esgotado), era um passeio preliminar onde os críticos e em particular Benjamin Crémieux, Edmond Jaloux, Albert Thibaudet, reconheceram atitudes, passeatas e raivas características do jovem actual. O Meu Corpo e Eu (1925), romance com um herói que traz dentro de si todas as suas aventuras e onde os gestos, as personagens não são mais do que pretextos, é um panorama interior. A seguir foi a vez dos romances A Morte Difícil (1926) e no ano seguinte Babilónia, aquele que Crevel escreveu ligando-o com mais intensidade à estética literária surrealista; o melhor dos três melhores romances do surrealismo francês — nomeiem-se aqui Hebdomeros de Chirico, A Liberdade ou o Amor de Robert Desnos e este Babilónia, com uma história contável dentro de parâmetros realistas, embora a deslizar em muitas das suas páginas para um discurso poético de intensa surrealidade.[…] René Crevel, o rebelde romancista do Surrealismo francês, regressa uma vez mais às suas obsessões de solidão e morte; persiste numa das suas denúncias preferidas, a da família orquestrada pela moral e por casamentos de burguesa virtude. A Menina, que se acha com direito a ver o mundo através de uma versão individual, dominada pela liberdade de ser e pensamento, começa a fazer-se mulher. E sente, com nitidez cada vez maior, que o seu pai, a sua prima Cynthia, a sua avó, a negrinha do Senegal, são todos invencivelmente dominados pelo desejo, todos ressuscitam o Vento soprado pelas licenças de uma velha Babilónia. Ela; o seu avô-psiquiatra só capaz de perceber os actos humanos que se adaptam à sua matriz, e que a todos os outros chama actos-cogumelos; a sua mãe que se sujeita, por falta de vento, a acompanhar um marido anão na sua propaganda evangélica, não ressuscitam o Vento.Mas esta consciência de não conseguir entregar-se aos Ventos da vida, perturba-a; ao não se ver capacitada para ressuscitar o seu Vento, foge do mundo pela indiferença e pelo medo. O final da história é melancólico: Terra insensível, terra vazia, Babilónia; depois dos gritos, das mordidas, é o grande silêncio. No mar, um dique continua este chão carnal, este grande corpo de continente que a insolação diviniza.Uma mulher, uma cidade lutam, por indiferença. [Aníbal Fernandes]
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O Essencial Sobre José Saramago«Aquilo que neste livro se entende como essencial em José Saramago corresponde à sua específica identidade como escritor, com a singularidade e com as propriedades que o diferenciam, nos seus fundamentos e manifestações. Mas isso não é tudo. No autor de Memorial do Convento afirma-se também uma condição de cidadão e de homem político, pensando o seu tempo e os fenómenos sociais e culturais que o conformam. Para o que aqui importa, isso é igualmente essencial em Saramago, até porque aquela condição de cidadão não é estranha às obras literárias com as quais ela interage, em termos muito expressivos.» in Contracapa -
Confissões de um Jovem EscritorUmberto Eco publicou seu primeiro romance, O Nome da Rosa, em 1980, quando tinha quase 50 anos. Nestas suas Confissões, escritas cerca de trinta anos depois da sua estreia na ficção, o brilhante intelectual italiano percorre a sua longa carreira como ensaísta dedicando especial atenção ao labor criativo que consagrou aos romances que o aclamaram. De forma simultaneamente divertida e séria, com o brilhantismo de sempre, Umberto Eco explora temas como a fronteira entre a ficção e a não-ficção, a ambiguidade que o escritor mantém para que seus leitores se sintam livres para seguir o seu próprio caminho interpre tativo, bem como a capacidade de gerar neles emoções. Composto por quatro conferências integradas no âmbito das palestras Richard Ellmann sobre Literatura Moderna que Eco proferiu na Universidade Emory, em Atlanta, nos Estados Unidos, Confissões de um jovem escritor é uma viagem irresistível aos mundos imaginários do autor e ao modo como os transformou em histórias inesquecíveis para todos os leitores. O “jovem escritor” revela-se, afinal, um grande mestre e aqui partilha a sua sabedoria sobre a arte da imaginação e o poder das palavras. -
Sobre as MulheresSobre as Mulheres é uma amostra substancial da escrita de Susan Sontag em torno da questão da mulher. Ao longo dos sete ensaios e entrevistas (e de uma troca pública de argumentos), são abordados relevantes temas, como os desafios e a humilhação que as mulheres enfrentam à medida que envelhecem, a relação entre a luta pela libertação das mulheres e a luta de classes, a beleza, o feminismo, o fascismo, o cinema. Ao fim de cinquenta anos – datam dos primeiros anos da década de 1970 –, estes textos não envelheceram nem perderam pertinência. E, no seu conjunto, revelam a curiosidade incansável, a precisão histórica, a solidez política e o repúdio por categorizações fáceis – em suma, a inimitável inteligência de Sontag em pleno exercício.«É um deleite observar a agilidade da mente seccionando através da flacidez do pensamento preguiçoso.» The Washington Post«Uma nova compilação de primeiros textos de Sontag sobre género, sexualidade e feminismo.» Kirkus Reviews -
Para Tão Curtos Amores, Tão Longa VidaNuma época e num país como o nosso, em que se regista um número muito elevado de divórcios, e em que muitos casais preferem «viver juntos» a casar-se, dando origem nas estatísticas a muitas crianças nascidas «fora do casamento», nesta época e neste país a pergunta mais próxima da realidade não é por que duram tão pouco tantos casamentos, mas antes: Por que é que há casamentos que duram até à morte dos cônjuges? Qual é o segredo? Há um segredo nisso? Este novo livro de Daniel Sampaio, que traz o título tão evocativo: Para Tão Curtos Amores, Tão Longa Vida, discute as relações afetivas breves e as prolongadas, a monogamia e a infidelidade, a importância da relação precoce com os pais e as vicissitudes do amor. Combinando dois estilos, o ficcional e o ensaístico, que domina na perfeição, o autor traz perante os nossos olhos, de modo muito transparente e sem preconceitos, tão abundantes nestas matérias, os problemas e dificuldades dos casais no mundo de hoje, as suas vitórias e derrotas na luta permanente para manterem viva a sua união.Um livro para todos nós porque (quase) todos nós, mais tarde ou mais cedo, passamos por isso. -
A Vida na SelvaHá quem nasça para o romance ou para a poesia e se torne conhecido pelo seu trabalho literário; e quem chegue a esse ponto depois de percorrer um longo caminho de vida, atravessando os escolhos e a complexidade de uma profissão, ou de uma passagem pela política, ou de um reconhecimento público que não está ligado à literatura. Foi o caso de Álvaro Laborinho Lúcio, que publicou o seu primeiro e inesperado romance (O Chamador) em 2014.Desde então, em leituras públicas, festivais, conferências e textos com destinos vários, tem feito uma viagem de que guarda memórias, opiniões, interesses, perguntas e respostas, perplexidades e reconhecimentos. Estes textos são o primeiro resumo de uma vida com a literatura – e o testemunho de um homem comprometido com as suas paixões e o diálogo com os outros. O resultado é comovente e tão inesperado como foi a publicação do primeiro romance. -
Almoço de DomingoUm romance, uma biografia, uma leitura de Portugal e das várias gerações portuguesas entre 1931 e 2021. Tudo olhado a partir de uma geografia e de uma família.Com este novo romance de José Luís Peixoto acompanhamos, entre 1931 e 2021, a biografia de um homem famoso que o leitor há de identificar — em paralelo com história do país durante esses anos. No Alentejo da raia, o contrabando é a resistência perante a pobreza, tal como é a metáfora das múltiplas e imprecisas fronteiras que rodeiam a existência e a literatura. Através dessa entrada, chega-se muito longe, sem nunca esquecer as origens. Num percurso de várias gerações, tocado pela Guerra Civil de Espanha, pelo 25 de abril, por figuras como Marcelo Caetano ou Mário Soares e Felipe González, este é também um romance sobre a idade, sobre a vida contra a morte, sobre o amor profundo e ancestral de uma família reunida, em torno do patriarca, no seu almoço de domingo.«O passado tem de provar constantemente que existiu. Aquilo que foi esquecido e o que não existiu ocupam o mesmo lugar. Há muita realidade a passear-se por aí, frágil, transportada apenas por uma única pessoa. Se esse indivíduo desaparecer, toda essa realidade desaparece sem apelo, não existe meio de recuperá-la, é como se não tivesse existido.» «Os motoristas estão à espera, o brado da multidão mistura-se com o rugido dos motores. Antes de entrarmos, o Mário Soares aproxima-se de mim, correu tudo tão bem, e abraça-me com um par estrondosas palmadas no centro das costas. A coluna de carros avança devagar pelas ruas da vila. Tenho a garganta apertada, não consigo falar. Como me orgulha que Campo Maior seja a capital da península durante este momento.»«Autobiografia é um romance que desafia o leitor ao diluir fronteiras entre o real e o ficcional, entre espaços e tempos, entre duas personagens de nome José, um jovem escritor e José Saramago. Este é o melhor romance de José Luís Peixoto.»José Riço Direitinho, Público «O principal risco de Autobiografia era esgotar-se no plano da mera homenagem engenhosa, mas Peixoto evitou essa armadilha, ao construir uma narrativa que se expande em várias direções, acumulando camadas de complexidade.»José Mário Silva, Expresso -
Electra Nº 23A Atenção, tema de que se ocupa o dossier central do número 23 da revista Electra, é um recurso escasso e precioso e por isso objecto de uma guerra de concorrência sem tréguas para conseguir a sua captura. Nunca houve uma tão grande proliferação de informação, de produtos de consumo, de bens culturais, de acontecimentos que reclamam a atenção. Ela é a mercadoria da qual depende o valor de todas as mercadorias, sejam materiais ou imateriais, reais ou simbólicas. A Atenção é, pois, uma questão fundamental do nosso tempo e é um tópico crucial para o compreendermos. Sobre ela destacam-se neste dossier artigos e entrevistas de Yves Citton, Enrico Campo, Mark Wigley, Georg Franck e Claire Bishop. Nesta edição, na secção “Primeira Pessoa”, são publicadas entrevistas à escritora, professora e crítica norte-americana Svetlana Alpers (por Afonso Dias Ramos), cujo trabalho pioneiro redefiniu o campo da história da arte nas últimas décadas, e a Philippe Descola (por António Guerreiro), figura central da Antropologia, que nos fala de temas que vão desde a produção de imagens e das tradições e dos estilos iconográficos à questão da oposição entre natureza e cultura. A secção “Furo” apresenta um conjunto de desenhos e cartas inéditos da pintora Maria Helena Vieira da Silva. Em 1928, tinha vinte anos. Havia saído de Portugal para estudar arte em Paris e, de França, foi a Itália numa viagem de estudo. Durante esse percurso desenhou num caderno esboços rápidos do que via, e ao mesmo tempo, escrevia cartas à mãe para lhe contar as suas impressões e descobertas. Uma selecção destes desenhos e destas cartas, que estabelecem entre si um diálogo íntimo e consonante, é agora revelada. Na Electra 23, é publicada, na secção “Figura”, um retrato do grande poeta grego Konstandinos Kavafis, feito pelo professor e tradutor Nikos Pratsinis, a partir de oito perguntas capitais; é comentada, pelo escritor Christian Salmon, na secção “Passagens”, uma reflexão sobre a história trágica da Europa Central do consagrado romancista e ensaísta checo, Milan Kundera. Ainda neste número, o ensaísta e jornalista Sergio Molino dá-nos um mapa pessoal da cidade de Saragoça, em que a história e a geografia, a literatura e a arte se encontram; o jornalista e colunista brasileiro Marcelo Leite trata das investigações em curso desde os anos 90, com vista ao uso farmacológico e terapêutico dos psicadélicos; a escritora e veterinária María Sanchez constrói um diário que é atravessado por procuras e encontros, casas e viagens, livros e animais, terras e mulheres, amor e amizade; o arquitecto, investigador e curador chileno Francisco Díaz aborda a relação entre solo e terreno, a partir do projecto da Cidade da Cultura de Santiago de Compostela, da autoria de Peter Eisenman; o artista e ensaísta João Sousa Cardoso escreve sobre a obra do escultor Rui Chafes, revisitando três exposições e um livro apresentados durante o ano de 2023; e o dramaturgo Miguel Castro Caldas comenta a palavra “Confortável”.Vários -
Diário SelvagemEste «Diário Selvagem», «até aqui quase integralmente inédito, é um livro mítico, listado e discutido em inúmeras cartas e cronologias do autor, a que só alguns biógrafos e estudiosos foram tendo acesso».