Esta antologia pode e não pode inscrever-se na coincidência entre livro e biografia que Serge Daney sempre procurou quando quis publicar recolhas dos seus textos críticos: entre os acidentes da cronologia e uma ideia de unidade, joga com um Daney no livro e fora do livro. Começando em flashback, pelo começo que é o fim (“O travelling de Kapò”), mantendo em cada secção uma organização cronológica, mas fazendo da antologia um não-livro, no sentido em que nenhuma das suas peças se subordina inteiramente a uma narrativa maior: livro de críticas, cada uma delas vale enquanto forma, arte, ideia de cinema e pretexto para fazer o diagnóstico do estado actual do cinema e do mundo. As críticas de Daney são portáteis, simultaneamente densas e ágeis; têm preocupações recorrentes, mas distinguem-se pela maleabilidade com que reagem aos filmes que as provocam: “É muito tenística, esta ideia de que seria escandaloso que o serviço não fosse seguido de uma resposta ao serviço. Eu não fui um grande servidor, mas, creio, fui bom nas respostas, como o Jimmy Connors.” Exigindo também ela resposta, a obra de Daney (nunca traduzida em livro em Portugal) é escrita de cinema e cinema por escrito: para ler, mas também para fazer escrever.
Serge Daney nasceu em Paris em 1944 e foi um dos grandes críticos de cinema da segunda metade do século XX. A sua cinefilia começa com Nuit et Brouillard de Resnais, visto no liceu, e com "De l'abjection", artigo de Rivette nos Cahiers du cinéma. Daney não deixou de voltar a estes dois marcos estéticos e morais, inseparáveis da tragédia do século. Começou a escrever regularmente para os Cahiers em 1964, no final do "período amarelo" da revista.
Perseverança é o livro que Serge Daney nunca escreveu. Começa com o seminal texto O travelling de Kapò e baseia-se numa entrevista feita a Daney por Serge Toubiana, durante três dias, pouco tempo antes da morte do primeiro. Serge Daney, cunhando-se cine-filho, fazia assim a sua cine-biografia. Como diz Toubiana no prefácio: “Nesse dia, Serge contou-me a sua própria história, o seu percurso de criança nascida em 1944 – o ano de Roma, Cidade Aberta e da descoberta dos campos –, depois, de adolescente e de jovem que, através do amor pelo cinema, iria escrever a sua vida. Ou seja, confundi-la com uma certa história do cinema.