O presente livro parte de uma interrogação de fundo: como apreender o Estado e a cidadania a partir das margens? Ou seja, a partir daqueles e daquelas que, apesar de integrados biopoliticamente nas estatísticas e nas políticas da população, não possuem uma pertença digna. Tal como as entendemos, as margens não constituem uma escolha ilustrativa e aleatória de casos, mas experiências vividas e efeitos de políticas e de dispositivos sociotécnicos que revelam, por um lado, a inelutável presença do Estado e, por outro, a arbitrariedade dos laços de cidadania. Os estudos presentes nesta obra abordam as pessoas afetadas pela canícula de 2003 em Portugal e França, e as políticas relativas a antigos territórios ligados à exploração do urânio e posterior requalificação ambiental, também em França como em Portugal.
Doutorado em Sociologia pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, onde exerce as funções de Professor Auxiliar. Investigador do Centro de Estudos Sociais, tem trabalhado nas áreas dos movimentos sociais e ação colectiva e, mais recentemente, nas questões relacionadas com o trauma, o risco e a vulnerabilidade social. É cocoordenador do Observatório do Risco (osiris) e do Centro de Trauma, sediados no Centro de Estudos Sociais. Das suas publicações destacam-se os artigos «Pessoas sem voz, redes indizíveis e grupos descartáveis: os limites da teoria do actor-rede (Prémio Análise Social 2011) e Social Vulnerability Indexes as Planning Tools: Beyond the Preparedness Paradigm, Journal of Risk Research.
Pedro Araújo
Investigador do Centro de Estudos Sociais Laboratório Associado.
É Mestre em Sociologia pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e licenciado pela mesma Faculdade. Os seus interesses de investigação centram-se nas questões do desemprego e, mais recentemente, do risco e da cidadania.
Das suas publicações destacam-se os livros «A Tirania do Presente. Do trabalho para a vida às incertezas do desemprego» (Quarteto, 2008) e, em coautoria com Hermes Costa, «As vozes do trabalho nas multinacionais: o impacto dos Conselhos de Empresa Europeus em Portugal» (Almedina/CES, 2009), distinguido com o Prémio Agostinho Roseta (6ª edição).
No dia 4 de março de 2001, por volta das 21 horas e 10 minutos, o desabamento do pilar P4
da Ponte Hintze Ribeiro, em Entre-os-Rios, provoca a queda parcial da estrutura do
tabuleiro. Um autocarro, com 53 pessoas a bordo, e três viaturas ligeiras, com seis
ocupantes, são atirados para as águas gélidas do rio Douro. Cinquenta e nove pessoas
perdem a vida.
Registam-se neste livro as impressões que o colapso parcial da Ponte Hintze Ribeiro deixou
nos familiares das vítimas.
Poema Cinzao corpo escreve-se com vime. e fica, depoisdo instante, a arborizar o vento.talvez a águaantes do eclipse.abre-se como um mapapor onde os riachos empardecem.vincos, nós, odor a cisco sob a canícula.ou espuma também?toda a terra é memória, lugarà margem,horizonte oscilando no tempoenquanto os pássarosrevoam.enreda-se na ferida das cidadese talha as casas, jáo mundo ardenum navio de cores.vara, por último. negrilho, por exemplo.bordãoencurvandopara a cinza.em redor, outras tardes. tardes ao pé da porta,quem sabe.tardes, moscas, pedras.um jeito de harpaa quebrar-se.e nenhuma música mais.música nenhuma, não.
Espero por ti nesta varanda sobre o tempo. De pé, frente à vidraça, olhando a cidade. As pregas do cortinado, impressas no entardecer, dão às casas um perfil soturno. Como se as visse através de grades.
«E, então, começou a ir para a rua com o corvo. Saía de manhã, dava um grande passeio pela cidade, detinha-se a olhar o rio, a ponte, a barca em sobressalto dos pensamentos. Pelo meio-dia, sem pressas, encaminhava- se para o Rossio, assobiando, às vezes calado e taciturno: pássaro na gaiola à justa, viajando na mão esquerda em bandeja ou, quando os músculos se extenuavam, pendendo do indicador-gancho, ossudo, com unha sujíssima e coriácia. Conhecia bem o lugar fresco junto ao chafariz. Limpava o chão, abria, espalmava o jornal retirado do bolso traseiro das calças; sentava, depois, os fundilhos na almofada assim improvisada, afagava os caracóis da barba, o cabelo mesclado de branco, o rebordo da orelha.»
«Mafra chegou ao fim, escuro exílio. Mafra, o frio de Janeiro tiritando no corpo, a humidade nas paredes, os corredores soturnos onde moram presságios e maldições. Tudo ali é fugaz, predicação de tormenta, manhãs de incerteza e sobressalto, também júbilo e azul — melodias da esperança — , mas a pedra, a abóbada dos tectos, o sombrio dos claustros, perdido o fulgor de outrora, repassam os dias de um torpor longevo. Tudo ali é breve. Mesmo que as horas pesem, a vida hiberne. Mesmo que haja instantes de cristal e levitação. Agora, ao deixar o Quartel e as suas extensões de beleza ao lusco-fusco, a acridez dos silêncios, as coisas desatam o nó dentro das vivências, que começam já a ser outras, solta-se o fio e nada resta. Nada? Os estigmas, a espessura dos constrangimentos, permanecem. E a atmosfera solidária com que defendemos a nossa humanidade ameaçada.» Este é um extracto do belo romance de José Manuel Mendes que a Caminho agora reedita.