Vemos sempre, e apenas, uma secção, uma parte do mapa. O que não está mapeado é desconhecido.
Este livro foi publicado por ocasião da exposição «No meio do caminho tinha um osso, tinha um osso no meio do caminho», de Pedro Valdez Cardoso, realizada pela Galeria Bessa Pereira e apresentada na Fundação Portuguesa das Comunicações, em Lisboa, entre 6 e 31 de Março de 2018
A exposição «No meio do caminho tinha um osso, tinha um osso no meio do caminho» de Pedro Valdez Cardoso reúne um conjunto de trabalhos realizados entre 2004 e 2018 que nunca tinham sido mostrados juntos. Podendo ser considerados como uma única série ampla, estas obras têm em comum um fascínio do artista pelo Árctico e pela construção de mapas, bem como uma forte presença de um imaginário arqueológico. Na sua maioria desenhos, viajam ao passado, a um passado mitológico e fictício, para nos proporem uma reflexão sobre o período em que vivemos hoje, no qual a actividade humana interferiu dramaticamente com o planeta e os seus ecossistemas. Serão os mapas de Valdez Cardoso vestígios do passado ou visões do futuro?
[...]
Valdez Cardoso cria novos mapas, novas narrativas ficcionadas. Sem intenções de os tornar em verdades universais, apropria-se de ferramentas e discursos protocientíficos, mascara-os e infunde-os com elementos de fantasia e de imaginação. Reconhece também o poder simbólico e evocativo destes objectos e a sua capacidade de corporalizar a história e a memória. Aqui, o artista suspende o tempo e a verdade histórica, geográfica e antropológica para explorar o mistério e o desconhecido com inscrições de territórios que nunca existiram. Estes desenhos têm também a característica de serem visões parciais e já bastante deterioradas pelo tempo. Vemos sempre, e apenas, uma secção, uma parte do mapa. O que não está mapeado é desconhecido. Território dos dragões.
«[ ] Em determinados momentos históricos mandou-se imprimir
um padrão comemorativo desse mesmo acontecimento
como forma de celebração. Como o tecido tem esta ligação histórica
memorativa e está associado a formas mais ou menos explícitas
de exercícios de poder, decidi criar esculturas baseadas numa
iconografia também ela associada ao poder. É aqui que surgem as
cabeças de animais / troféus exóticos e a heráldica, que depois eu
desconstruo pela forma como essa iconografia é reconstruída, através
do uso de objectos quotidianos e precários, tais como latas de
cerveja, cascas de banana ou meias.»
A linguagem destes inumeráveis géneros de coisas assemelha-se ao lixo que as marés lançam à praia ou aos ramos secos das podas que ao longo de um Verão se acumularam e aguardam os dias chuvosos do Outono para que possam arder numa queimada.
Este livro foi publicado por ocasião da exposição «Pedro Valdez Cardoso: História da Vida Privada» que teve lugar na Galeria 111, Lisboa, entre 11 de Novembro e 30 de Dezembro de 2017.
Plásticos, sob a forma de alguidares, ossos, vegetais… Madeira, sisal, cartão, linhas, cartolina, tecido, silicone, papel fotográfico, mapas, borracha, papel-manteiga, esferográfica, cordão, fita adesiva, papel químico, cimento, couro, latas de alumínio, cerâmica, cabelo artificial, porção de rocha, vidro, pano turco, esferovite, tela, napa, marcadores…
Materiais por onde se desenvolve e amplifica a criatividade na obra de Pedro Valdez Cardoso. E estarei longe de os ter esgotado. Eles são o instrumento por onde a sua arte percorre, interiorizando, em cada objecto que nos propõe, pensamentos sobre a conexão entre os instintos e um psiquismo que não se querem limitados nem pelo tempo nem pelo espaço e que evocam um aparentemente perdido mundo real.
[...]
O silêncio percorre quase sempre o trabalho de Valdez Cardoso. Um silêncio de mármore. Podemos tocá-lo. Liso. Profundo. Como se fosse a passagem de uns dedos sobre o nosso rosto, discretos. São obras de grande solidão aquelas com que nos deparamos, porque um círculo longínquo protege-as. Fogem da nossa inquietação, à semelhança de aves migratórias, que vivendo na distância dos céus ao modo de todas as aves, partem para um país longínquo na busca de um novo e outro silêncio.
[João Miguel Fernandes Jorge]
Sem que lhe falte a meditação melancólica sobre a finitude humana, a extinção e as ruínas, a instalação Frutos e Ossos será talvez uma forma indirecta de reflectir sobre a possibilidade de imaginar de novo e de actualizar a esperança e a capacidade de agir no nosso próprio tempo.
Este livro foi publicado por ocasião da exposição Frutos e Ossos, realizada na Galeria águas livres 8, em Lisboa, de 11 de Abril a 11 de Maio de 2019. «A presente instalação consiste numa constelação de vários grupos de peças que representam formas orgânicas, naturais e de criação humana — frutos, legumes, vários objectos de uso quotidiano como garrafas, talheres e pratos, e também ossos humanos e de animais. A natureza familiar e muitas vezes botânica dos objectos que compõem a instalação insere-a na tradição pictórica de cenas de mercado e interiores de cozinha, especialmente populares nos Países Baixos durante o século XVII. […] Estas cenas, que geralmente procuravam representar riqueza e abundância ou os meses do ano e o ciclo das estações (e da vida), incorporavam igualmente sugestões eróticas, evocando a fertilidade e certas partes do corpo humano. […] A representação escultural dos frutos feita por Valdez Cardoso não possui a sensualidade voluptuosa das representações do passado. De facto, tanto o processo da corrupção como o potencial regenerativo que pairava por trás da ameaça da putrefacção desapareceram por completo. […] Sem que lhe falte a meditação melancólica sobre a finitude humana, a extinção e as ruínas, a instalação Frutos e Ossos será talvez uma forma indirecta de reflectir sobre a possibilidade de imaginar de novo e de actualizar a esperança e a capacidade de agir no nosso próprio tempo. Logo, pareceria um convite a repensar e alterar activamente as nossas opções globais enquanto colectivo humano. Em vez de cultivarmos uma ética de desprendimento, como habitualmente defende a antiga disciplina ascética do memento mori, somos antes de mais nada encorajados a renovar o nosso olhar e a respirar outra vez a vida, revigorando a vibrante policromia da sensualidade, convivência e voluptuosidade nas nossas existências interligadas. Estamos certamente a lidar aqui com uma espécie de memento vivere.» Katherine Sirois
«O que Pedro Valdez Cardoso nos propõe é a tomada de consciência dos equívocos da imagem, dos equívocos da linguagem, dos equívocos da História, dos equívocos do tempo e do espaço [...].»Este livro foi publicado por ocasião da exposição «Mão no Fogo», de Pedro Valdez Cardoso, com curadoria de Nuno Sousa Vieira, que teve lugar no Centro de Arte e Imagem – Galeria do IPT, em Tomar, entre 7 de Março e 19 de Maio de 2019.«Mão no Fogo apresenta-se, neste contexto, como uma aparente evocação de um esforço na perpetuação desta condição de elevação, que é construída num diálogo entre um corpo estereotipado e uma chama que corrobora e permite ao Homem a ascensão à condição de Deus. Mas, por descuido ou aviso divino, esse corpo é reconduzido à sua condição de humano, quando ao sentir o aumento da temperatura que a chama lhe provoca, ele consciencializa a dor. Tal como sucedeu a Ícaro, quanto maior é a subida, mais violenta se configura a queda. A luva que protegia a mão enegreceu, perdeu o viço e foi vaticinada à solidão eterna.É este aparente acontecimento mítico que se dilui nas mais insignificantes práticas do quotidiano, que entendo ser uma das questões basilares em toda a prática de Pedro Valdez Cardoso. Na sua obra as grandes epopeias resvalam nos mais singelos acontecimentos. E a chama sagrada, não deixando de o ser, é usada no quotidiano quer para iluminar o espaço, quer para nos aquecer nos tempos de frio, ou ainda para nos proteger dos animais, sejam eles uma águia invertida com uma visão abrangente, ou os pés amarrados da besta, que assim nos permite continuar a manter-nos em segurança. [...]Em Mão no Fogo, tal como acontece em muitas das obras de PVC, a escuridão não é necessariamente o oposto da claridade, do mesmo modo que a alta cultura não se opõe à baixa cultura. A justaposição, seja por alternância ou por fusão, é a palavra de ordem e, por mais rigoroso que seja o cumprimento de um cânone, dificilmente conseguimos referenciar esse facto quando estamos perante o que poderá ser entendido, neste contexto, como o âmago do próprio corpo, ou seja, o seu esqueleto.»Nuno Sousa Vieira
O que realmente interessa a PVC é aquilo que está nas entrelinhas, o que não se lê ou diz mas é demasiado perceptível.
Interessam-lhe os mecanismos de controlo, as relações de poder, a subjugação permanente, ainda que subversiva, do outro.
O efeito de paralaxe em que frequentemente vivem as suas peças é a pedra-de-toque de um discurso que se constrói sobre uma lógica de intervalo, de lacuna e de antecipação — o pré-conceito como dispositivo. Interessa-lhe, basicamente, a forma de contar, a história e os elementos no seu interior, por esta ordem.O que parece estar sempre em cena, ou em causa, é o corpo, em rigor o único barómetro mensurável, o único lugar comum e último reduto da individualidade e da diferença — o lugar de todas as formas de dominação. A natureza, a animalidade, a caça, a guerra, são, finalmente, formas de (des)figuração de um medo original, de uma dobra escondida: o outro em nós. Porque, afinal, «o inferno são os outros».[Nuno Faria]
Encontrarmo-nos perante uma obra de Pedro Valdez Cardoso é permitirmo-nos responder ao desafio do cruzamento e da dissolução, conscientes de que, dos vários processos de justaposição que vai promovendo na dinâmica construtiva própria do seu trabalho podem resultar momentos de maravilhamento que carregam sempre um peso, lembrando-nos que por detrás de uma máscara está sempre um rosto que é ele próprio, simultaneamente, sempre uma máscara.[Ana Anacleto]