Teologia da Carne - A Pintura de António Gonçalves
Objecto ou objectivo deste pintor: pintar Eros, pintar o desejo erótico. Mas pintá-lo por si, pintar o desejo «ele mesmo».
O que deveras aqui se pinta, o que aqui se dá a ver, é uma sagração. É a sagração de Eros, a celebração artística da sacralidade do desejo erótico e com ele da vida, a afirmação pictural da inocência, «para lá de bem e mal» (Nietzsche), da vontade vital que se exprime no erotismo. A pintura como culto, cena ou encenação do mistério da «encarnação» do desejo e desse modo do mistério da vida, da «anunciação» erótica da vida. Um sentido do sagrado, do espírito sacral da figuração, que decorre de imediato da apresentação políptica, retabular, desta pintura. Uma espécie de teologia da vida legível na «textualidade» puramente visual composta pelas várias figuras dos polípticos.
Sousa Dias nasceu no Porto em 1956. Professor. Publicou, entre outros livros, Questão de estilo (coletânea de textos de teoria da literatura e da arte), O que é poesia? (ensaios de teoria crítica) e Grandeza de Marx – Por uma política do impossível.
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Grandeza de Marx: por uma política do impossívelPode a Ideia de comunismo, nem que com outro nome, na sua imperatividade por assim dizer ética, na «messianicidade» (Derrida) da sua apelação como Ideia de uma justiça que expropriasse as expropriações organizadas como realidade «possível», de um Acontecimento que instaurasse, não uma pós-história, mas uma outra história, de uma Alternativa como comunidade fundada na comum auto-apropriação, não a anulação ou alienação colectivista do indivíduo mas ao invés a afirmação do individual, comunidade não hierárquica do ser-em-comum como função do ser-si-mesmo, relação igualitária com os outros, com o outro como outro, com a alteridade do outro—pode essa Ideia perder jamais a sua força imperativa, abdicar dos seus direitos como Ideia? Pode ela morrer, dissipar-se, extinguir-se jamais? Expirar, esgotar o prazo de validade histórica, prescrever? Ou, pelo contrário, ela é aquilo mesmo, aquela mesma, que não prescreve nunca, a Ideia por excelência imprescritível ? -
Pre-Apocalypse Now: diálogo com Maria João Cantinho sobre política, estética e filosofiaVivemos numa época de amálgamas espúrias, que confunde pensamento e comunicação, crítica e marketing, teoria e opinião de «especialista», pensador e intelectual mediático ou jornalista cultural. Época de sobre-informação mas, paradoxalmente, época antipensamento, de extravio generalizado do sentido do pensamento, de refluxo do pensamento sob todas as suas formas. E, não por acaso ou por coincidência, época de uma extrema desumanização do humano, da dessubstancialização da subjectividade humana, como diz Zizek, do mais dócil e cobarde corpo social, como diz Agamben. Uma catástrofe do pensamento, de que o «fim das ideologias» é uma reverberação, e com ela um desastre do humano, desastre absoluto no qual estaremos talvez só a entrar, um pré-apocalipse espiritual para o qual não se vislumbra saída. Escreve noutro texto Agamben que, enquanto o animal pode a sua potência, variável de espécie para espécie, mas definida de uma vez por todas pela sua natureza ou «vocação biológica», o homem, desprovido de natureza, é aquele ser que pode a sua própria impotência. «A grandeza do seu poder mede-se pelo abismo da sua impotência». A saída da presente situação do humano, a existir, passará necessariamente pelo pensamento, quer dizer, pelo poder ilimitado, desmedido, dessa impotência do homem. -
Anti-Doxa - A Filosofia na Era da ComunicaçãoA filosofia é coisa unicamente greco-europeia, greco-ocidental, e não o dizemos para fazer nosso o cliché hegelo- heideggeriano. Aquilo que define a filosofia desde os primeiros filósofos gregos, já nos pré-socráticos ou «naturalistas», é, antes de mais, a recusa de toda e qualquer transcendência da Natureza ou do Ser, é a exigência de um pensamento capaz de proceder por imanência […] A presente colectânea reúne, com inúmeras modificações substanciais até por vezes do respectivo título, todos os textos de Estética do conceito (1998) e alguns de Questão de estilo (2004), ambos publicados pela extinta Pé de Página Editores, de Coimbra, e que não serão reeditados. Acrescenta-lhes novos textos, um dos quais, sobre as idades da filosofia, inédito. Informação, pensamento e criação, cultura comunicacional e filosofia: o desastre do pensamento na era da comunicação, dos media e do marketing — as co-dimensões lógica e estética, intelectual e perceptual, do conceito filosófico — afinidade da filosofia com a arte — as 4 idades históricas da filosofia — do fundamento ao «afundamento» da metafísica: do problema da fenomenologia à questão do ser — a ultrapassagem desta questão nos últimos escritos de Heidegger — Michel Serres, René Thom, a teoria da ciência e os critérios de cientificidade: para acabar de vez com a epistemologia — pintura e filosofia: Álvaro Lapa — a filosofia como descomunicação: teoria da argumentação e prática filosófica — a filosofia escolar: ensinar o ensinável. -
Grandeza de Marx - Por Uma Política do ImpossívelA Ideia de comunismo é, conforme a metáfora de Marx, um espectro, mas não no sentido de uma ilusão: antes um espectro vivo, duplo ou fantasma revolucionário da intolerável realidade existente, por ela segregado como o seu negativo sempre virtualmente presente. Talvez um dia se quebrem as barreiras globais do medo e o sentimento de impotência e o comum descubra a vulnerabilidade da realidade sistémica que nos domina e dos poderes que asseguram essa realidade e afastam os homens do seu próprio poder. Aguardamos esse dia com alegre pessimismo, mil vezes preferível ao optimismo triste dos esquerdistas que já só esperam um reformismo democrático ilimitado do sistema dominante. Porquê escrever afinal sobre Marx, porquê permanecer marxista, quando o marxismo, ensombrado por conotações históricas monstruosas, crepusculizou como filosofia e como ideologia? Porquê insistir na grandeza e, mais ainda, na actualidade de Marx? Desde a República de Platão que a filosofia como teoria política sempre foi inseparável de um projecto revolucionário: em cada época a proposta de uma possibilidade política incompossível com a realidade da época, de uma comunidade por vir impossível de acordo com o campo de possibilidades dessa realidade. Marx não criou o comunismo, que o antecedeu de séculos, mas foi quem fez essa Ideia descer do céu das utopias à vida histórica dos homens e transformar-se no grande projecto revolucionário do mundo moderno, mostrando que o capitalismo tinha trazido consigo as condições materiais (económicas e sociais) para essa transformação. E foi ele quem mostrou também porque é que esse «espectro que ronda» há-de sempre vir, voltar, regressar com esse nome ou outro, continuar a rondar o real e o possível que o conjuram. E com efeito, nestes tempos pré-apocalípticos como os designa Žižek, torna-se cada vez mais evidente que, «contra a ausência do homem no homem» como diz o poeta, o comunismo é a única hipótese do homem. [Sousa Dias] -
Logica do AcontecimentoAtravés de um jogo de colagens de textos, de manipulações e de simplificações, de omissões e de ênfases, quisemos extrair da complexa obra deleuziana uma sóbria linha articulatória capaz de se propor como uma auto-apresentação do criador. «A história da filosofia não é uma disciplina particularmente reflexiva. Antes é como a arte do retrato na pintura. São retratos mentais, conceptuais. Como na pintura, é preciso fazer parecido, mas por meios que não são parecidos, por meios diferentes: a parecença deve ser produzida, e não meio de reproduzir (o autor limitar-se-ia a repetir o que o filósofo disse) (…) A história da filosofia deve, não repetir o que disse um filósofo, mas dizer o que ele subentendia necessariamente, o que ele não dizia e que está porém presente no que ele dizia». Bastam decerto estas palavras do próprio Deleuze para desautorizar este nosso estudo, sem dúvida demasiado escolar, reprodutivo. Mas talvez não completamente frívolo, atentando na escassa bibliografia sobre ele existente, sintomática mas injusta ressonância da coerência exemplar de uma criação avessa a compromissos com as condições da época. Através de um jogo de colagens de textos, de manipulações e de simplificações, de omissões e de ênfases, quisemos extrair da complexa obra deleuziana uma sóbria linha articulatória capaz de se propor como uma auto-apresentação do criador. E de traçar os contornos originais da sistematicidade e, nesse sentido, do ostensivo classicismo de um dos mais estimulantes pensamentos do nosso tempo. [...] A concluir, como caracterizar em termos sumários o efeito único do trabalho de Deleuze sobre a cena filosófica, como dar conta do efeito-Deleuze? Como dizer o deleuzianismo como Acontecimento filosófico? Um vento, uma ventania refrescante, uma atmosfera mais respirável, mais habitável, mais livre. A suscitação do desejo, desejo de pensar, de ver e de ler mais, sem proceder por memória, por consciência cultural, vontade de uma vida mais intensa, um irresistível efeito nómada, segredo de estilo. A filosofia como pathos, uma paixão de pensar motivada não imediatamente por problemas, muito menos pela tradição, mas sempre por circunstâncias práticas, por situações concretas, por estados vividos, e como sua despersonalização. O pensamento como heterogénese, mas em nós, de nós. O conceito como passagem de um concreto a outro concreto, a teoria como passagem de uma prática a outra prática. Vitalismo. Viagem. Ou "devir não humano dos homens", fulgor desta fórmula, prescritiva tanto quanto especulativa, toda uma metafísica e toda uma ética. Toda uma negação do finito como medida humana, do espírito de finitude como infidelidade ao pensamento e à vida, dos limites e impossibilidades que fazem os nossos conformismos, toda uma exposição activa ao que nos excede, e uma afirmação desse excesso, do infinito-impessoal, como a nossa medida, a nossa realidade transcendental. [da Conclusão] -
O Que e a PoesiaPoesia, função da linguagem e não do vivido — mas arte do silêncio e não da palavra — o paradoxo da criação poética: dizer o indizível — todo o poema diz a sua própria impotência, sendo este o seu incomparável poder — Ruy Belo e o bilinguismo formal da poesia — verdade poética e verdade lógica: o excesso de ser no ser ou o real para lá do real — o exemplo do lirismo: não há poesia subjectiva — o poema, linguagem fora de si: heterogénese da língua como pintura e como música — a questão da imagem poética: estatuto ontológico, e não literário, dessa imagem — não há metáforas na poesia, a poesia é anti-metáfora — Herberto Helder e Manuel António Pina como exemplos da não-metaforicidade da poesia — porque é que raros autores que publicam poemas podem considerar-se poetas. «Um poema é sempre mais do que um poema: é uma poética, uma ideia de arte poética. Cada poema é já um conceito do poético, já uma resposta à questão: o que é a poesia? Não há como os poetas para nos dizer o que poesia quer dizer, mas é nos próprios poemas —na noção implícita de poema, ou eventualmente explícita em termos ainda assim (meta)poéticos —que se encontra o pensamento «estético» dos poetas. É com efeito frequente os poemas de um poeta serem tudo o que ele pensa, tudo o que ele escreve, «sobre» poesia. «Pergunto como se escreve o poema? E a resposta possível / é escrever o poema» (Nuno Júdice, O estado dos campos). Sucede no entanto um grande poeta escrever textos de teoria ou de crítica literária que de certo modo fazem parte da sua obra poética, na medida em que constituem a auto-expressão teórica dessa obra, ou a sua passagem para um plano de doutrina estética. É o caso entre nós, de todos o mais conhecido, de Fernando Pessoa. Mas é também o caso, por exemplo, de Ruy Belo.» [Sousa Dias] -
Zizek Marx & Beckett e a Democracia por Vir«Democracia» designa hoje na linguagem política um significante vazio, tão mais consensual quanto mais vazio, quanto mais inquestionado no seu conceito ou na sua substância, espécie de religião laica universal. O problema filosófico-político deste tempo não é a crítica do capitalismo, sobre a qual toda a gente está mais ou menos de acordo. É a crítica da democracia que nos vendem, a única a que nos dizem termos direito, como regime de poder inseparável da realidade capitalista dominante e modo ideal, e também o mais cínico, de legitimação sociopolítica dessa realidade. Uma crítica ciente de que a solução para os cada vez mais dramáticos problemas da humanidade suscitados pelo capitalismo global, para o presente estado pré-apocalíptico do mundo, não passa por esta democracia. -
As 4 Idades da Filosofia - E Outros TextosO título deste texto [«As 4 Idades da Filosofia»] repete o de outro, publicado num livro anterior. Tratava-se aí de diferenciar as idades históricas da filosofia na óptica das categorias finito/infinito. Aqui, trata-se de diferenciar essas mesmas idades mas em função das concepções do pensamento mais características de cada uma delas. Inspira-nos, neste desígnio, a distinção introduzida por Deleuze entre ideologia e noologia e as teses noológicas por ele expostas no seu ensaio sobre a filosofia. Ideologia, no sentido dessa distinção, remete para o estudo das doutrinas dos filósofos, dos seus sistemas de ideias, das suas constelações de conceitos. Em contrapartida, a noologia tem por objecto o estudo daquilo a que aquele filósofo chama as «imagens do pensamento», quer dizer, das respostas, tantas vezes implícitas, dos filósofos à questão «o que é pensar?», «o que é filosofar?». A noologia (de nous, palavra grega para espírito, ou pensamento) consiste, pois, na tematização das formas filosóficas de pensar tomadas em si mesmas, do pensamento do pensamento, da auto-imagem do filosofar pressuposta por cada filosofia, por toda a ideação conceptual, pela criação de ideologias filosóficas.[Sousa Dias]