O Teatro e o Seu Duplo
«O Teatro e o Seu Duplo, publicado em 1938 e reunindo textos escritos entre 1931 e 1936, é um ataque indignado em relação ao teatro. Paisagem de combate, como a obra toda, e reafirmação, na esteira de Novalis, de que o homem existe poeticamente na terra.
Uma noção angular é aí desenvolvida: a noção de atletismo afectivo.
Quer dizer: a extensão da noção de atletismo físico e muscular à força e ao poder da alma. Poderá falar-se doravante de uma ginástica moral, de uma musculatura do inconsciente, repousando sobre o conhecimento das respirações e uma estrita aplicação dos princípios da acupunctura chinesa ao teatro.»
Vasco Santos, Posfácio
Antonin Artaud nasceu em Marselha no dia 4 de Setembro de 1896, numa família de ascendência grega, cuja tradição o acabou por influenciar, nomeadamente no que diz respeito ao seu fascínio pelo misticismo. Sofrendo perturbações mentais desde cedo, passou, ao longo de toda a sua vida, várias temporadas internado em asilos.
Adepto do movimento surrealista, Artaud escreveu alguns poemas dentro dessa linha. No entanto, é no teatro que o autor se irá destacar. Estudou interpretação em Paris e fez, em 1921, a sua estreia no Dadaiste-Surréaliste Théâtre de l'Oeuvre. Foi também dramaturgo e, enquanto tal, apresentou uma ideia que não foi compreendida pelo seu tempo, mas que deixou marcas para a posteridade: o "teatro da crueldade".
Com os seus Manifeste du Théâtre de la Cruauté (1932) e Le Théâtre et Son Double (1938), Artaud propõe substituir o teatro clássico pelo "teatro da crueldade", no qual a peça já não é apenas um espetáculo, passando a ser uma união entre os atores e o público através de um exorcismo mágico. Apesar de as teorias de Artaud não terem sido bem aceites pela sua época, foram determinantes, por exemplo, para o Teatro do Absurdo, tendo inspirado autores como Genet, Ionesco e Beckett. Morreu a 4 de Março de 1948 em Ivry-sur-Seine.
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Heliogabalo ou o Anarquista CoroadoA tradução é de Mário Cesariny. Heliogabalo foi o controverso Imperador que fez a entrada triunfal em Roma em 218, montando um “phalus” gigante, tendo vindo a morrer quatro anos depois, assassinado numa latrina pública. O livro de Artaud, mais do que uma biografia bem informada do Imperador proveniente do mítico Oriente, representa, como num teatro, os símbolos alquímicos em que o homem reflecte os seus duplos, num mundo estratificado, como as cartas do Tarot. O trono de Heliogabalo, diz Artaud, está encimado por Ouroboros, a serpente que morde a cauda, “símbolo da unidade cósmica da obra sem princípio nem fim”. Heliogabalo, segundo Artaud, “parece ser a feliz contracção gramatical das mais altas denominações do Sol”. -
Eu, Antonin Artaud"Foi em 1918 que senti em mim as primeiras dentadas destas ondas internas da alma que nos atormentam para ganharem forma. Música, teatro, pintura, poesia, eu compreendia que já não bastariam concretizações como estas, concretizações um dia destinadas a perecer e a perder força, e que o fogo que em mim ardia precisava de 'corporizações' totalmente diferentes. Mas como desarrumar o real até chegar a esta encarnação maior de uma alma que consegue, encarnada num corpo, impor-lhe a carne sexual dura, a carne de alma do seu verdadeiro corpo?" -
Van Gogh - O Suicidado da SociedadeA consciência geral da sociedade, como castigo de ele se ter extirpado dela, suicidou-o. Van Gogh apareceu à venda nas livrarias em 15 de Dezembro de 1947, quase dez meses depois de uma escolha significativa das telas do pintor ter sido exposta no museu da Orangerie, em Paris. A Antonin Artaud — saído de um longo internamento em asilos psiquiátricos, a sofrer a fase terminal de um cancro — só restariam três meses de vida. A conjunção deste factor emocional e uma grande surpresa (a atribuição, que lhe foi feita, do prémio Sainte-Beuve na categoria ensaio) talvez possam explicar a tiragem imediata de quase seis mil exemplares, êxito de público sofrível mas desconhecido até à data com uma obra do autor. Libertado, enfim, do asilo de Rodez, Artaud mostrava a sombra ressequida do actor que muitos tinham conhecido, cravava a sua faca-fetiche em mesas de cafés que lhe consentiam o espectáculo de uma agressividade inofensiva, exibia na rua grandes tempestades verbais. […] A par deste comportamento, Artaud surpreendia os mais próximos com uma lucidez transtornada, um estado de invectiva perante os «normais» alimentado por convulsões poéticas com fascínio mal conhecido na literatura. É, pois, previsível que a exposição da Orangerie surgisse a amigos seus como oportunidade de assistir à detonação deste Artaud crispado perante o desfile de corvos, céus alucinados, faces auto-reflectidas em tensão de um Van Gogh também ele acusado de loucura. […] Artaud surpreendeu. Saía do seu abismo para habitar verdades mal reconhecidas pelos juízos «normalizantes», a falar de si com o pretexto de outro como ele, suicidado pela hostilidade geral aos que preferem ficar doidos, no sentido em que socialmente o entendemos, a envergonhar uma certa ideia superior de honra humana. A uma luz selvagem Artaud pintava-se já na morte, com a morte de Van Gogh. Entre os outros e o seu corpo tentava interpor aquela dureza que petrifica a alma mantendo-a móvel, disse ele uma vez, e vazia. E surgiu assim num ponto alto (o mais alto, preferem alguns) da sua ebulição interna. [Aníbal Fernandes] -
Eu, Antonin ArtaudEu, Antonin Artaud, só quero escrever quando já não tiver mais nada para pensar. — Como alguém que comesse o ventre, os ventos do seu ventre por dentro.Apresentação Um rosto como este...ANTES DE RODEZEm 1933, Antonin Artaud...O Teatro e a PesteEm 1781, o italiano Seraffino...O Teatro de SéraphinEM RODEZEm 23 de Julho de 1937...O Surrealismo e o Fim da Era Cristã[A Vida e o Ópio] (carta a Henri Parisot)O período de Rodez...[As «Quimeras» de Nerval] (carta a Georges le Breton)DEPOIS DE RODEZEm 23 de Maio de 1946...Alienação e Magia NegraQuando Antonin Artaud saiu de Rodez...Carta a Peter WatsonEm Janeiro de 1947...Carta a André BretonDe 4 a 20 de Julho de 1947...[O Rosto Humano]O Teatro e a CiênciaNa obra escrita de Artaud...[O Homem-Árvore] (carta a Pierre Loeb)[Os Seres…]POST SCRIPTUM Quem sou? / De onde venho? / Eu sou o Antonin Artaud, / e se o disser / como sei dizê-lo, / imediatamente / vereis o meu corpo actual / voar em estilhaços / e refazer / com dez mil aspectos / notórios / um corpo novo / onde não podereis / nunca mais / esquecer-me. -
Heliogábalo ou O Anarquista CoroadoLe Clézio: «Quem não leu Heliogábalo não aflorou o verdadeiro fundo da nossa literatura selvagem.» Artaud fez-lhe um dia notar [ao editor Denoël] que Heliogábalo, reduzido pela História à crueldade demente, realizava anarquicamente em si a identidade dos contrários e professava uma pederastia religiosa com origem numa luta sem tréguas entre o Masculino e o Feminino; e que apenas foi repugnante «por ter perdido esta noção transcendente e soçobrar no erotismo da criação em acto e sexualizada». Fascinado com esta ideia, e antegozando o que ela poderia oferecer depois de passar pelas complexidades de uma mente e de um talento literário como o de Antonin Artaud, Denoël propôs-lhe que escrevesse uma biografia desse imperador dominada por esta visão «heterodoxa» que beliscava a caução de reconhecidas competências e em muito afrontaria a opinião de conceituados historiadores. [...] Pela visão de Artaud, este jovem imperador de tão curto reinado ocupou-se sobretudo em ser altíssimo exemplo de uma anarquia sexual que realizava a identidade dos contrários, respondia à confusão dos sexos e fazia-os regressar à pureza da androginia primordial. Citemos o próprio Artaud: «Heliogábalo é o homem e a mulher. E a religião do sol é a religião do homem mas que nada pode sem a mulher, o duplo onde ele se reflecte. A religião do UM que se parte em DOIS para actuar. Para SER. A religião da separação inicial do UM. UM e DOIS reunidos no primeiro andrógino. Que é ELE, o homem. E ELE, a mulher. Ao mesmo tempo. Reunidos em UM.» [...] Ao polémico Heliogábalo, a passagem dos anos fez a desejável justiça. E não podemos, como prova inequívoca, deixar de lembrar o que a seu respeito disse o irreprimível entusiasmo de J.M.G. Le Clézio: «Ora aqui temos o livro mais violento da literatura contemporânea, quero eu dizer de uma violência bela e regeneradora. […] Quem não leu Heliogábalo não aflorou o verdadeiro fundo da nossa literatura selvagem.» [Aníbal Fernandes] -
Para Acabar de Vez com o Juízo de Deus seguido de O Teatro da Crueldade«Eu respondo que estamos todos num estado de terrível hipotensão, não temos um átomo a perder sem arriscarmos de voltar imediatamente ao esqueleto, já que a vida é uma incrível proliferação, o átomo incluso põe outro, o qual por sua vez imediatamente faz rebentar ainda outro.O corpo humano é um campo de batalha e seria bom que voltássemos lá.É agora o nada, agora a morte, agora a putrefacção, agora a ressurreição, esperar não sei qual apocalipse do além, a explosão disso no além para decidirmos a retomar as coisas é uma crapulosa brincadeira.É agora que é preciso retomarmos a vida.»Antonin Artaud -
Viagem ao País dos TarahumarasArtaud escreveu textos sobre o México que nunca chegaram a formar o livro que ele pensava intitular Viagem ao País dos Tarahumaras; que já têm sido associados com vários critérios, quanto à sua organização, e vão ser aqui reunidos por ordem cronológica. A sua idoneidade como resultado de uma experiência realmente vivida tem preocupado conscienciosos e desconfiados antropólogos. Sem outra confirmação que não seja a das suas próprias palavras, sentiram-se no direito de perguntar:Ele foi realmente iniciado no ritual do Peiotl? Chegou a estar pessoalmente em lugares considerados de muito difícil acesso, que têm desanimado outros curiosos? Terá assistido às danças dos índios tarahumaras? Ou ter-se-á apenas baseado em textos já existentes sobre a realidade que ele afirma ter presenciado? Quatro anos antes, «Galapagos, les îles du bout du monde» e «L’amour à Changaï» tinham aparecido como reportagens suas na revista Voilà, sabendo-se que Artaud nunca tinha estado em nenhum desses lugares. Mas J.M.G. Le Clézio afirma no seu Le rêve mexicain que não tem sentido levantar-se em Artaud a questão antropológica: «Seria absurdo e inútil conduzir ao nada este encantamento, este apelo de um relato de viagem procurando nele a autenticidade.» Évelyne Grossman, essa, pensa que «Artaud atravessou a Sierra como se atravessasse a morte»; que percorreu «um mundo de sinais sagrados, de poesia e teatro em estado puro.» E o próprio Artaud escreve que fez no México uma «descida para voltar a sair no dia.» Há no entanto algumas certezas. A do seu irresistível desejo de aventura: «É para mim uma verdadeira aventura e com isso a agradar-me, aliás, dentro dela, uma vez que parto com grande escassez de fundos. Terei a todo o custo de contar com o que irei encontrar lá para viver. E o destino, ao que parece, não poderá deixar de falar.» […] Que no dia 1 de Agosto pediu um prolongamento da sua permanência no México. Que no fim de Agosto partiu em direcção à Sierra Tarahumara, depois de conseguir uma pequena quantia dada pelas Belas Artes do México. Que passou todo o mês de Setembro na região dos Tarahumaras. Que em 7 de Outubro regressou à Cidade do México. Que El Nacional publicou traduções de «A Montanha dos Sinais» e «O País dos Reis Magos». Que em 31 de Outubro embarcou em Vera Cruz no navio Mexique e em 12 de Novembro desembarcava em Saint-Nazaire, em solo francês.[Aníbal Fernandes]
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Os CavaleirosOs Cavaleiros foram apresentados nas Leneias de 424 por um Aristófanes ainda jovem. A peça foi aceite com entusiasmo e galardoada com o primeiro lugar. A comédia surgiu no prolongamento de uma divergência entre o autor e o político mais popular da época, Cléon, em quem Aristófanes encarna o símbolo da classe indesejável dos demagogos. Denunciar a corrupção que se instaurou na política ateniense, os seus segredos e o seu êxito, eis o que preocupava, acima de tudo, o autor. Discursos, mentiras, falsas promessas, corrupção e condenáveis ambições são apenas algumas das 'virtudes' denunciadas, numa peça vibrante de ritmo que cativou o público ateniense da época e que cativa o público do nosso tempo, talvez porque afinal não tenha havido grandes mudanças na vida da sociedade humana. -
Atriz e Ator Artistas - Vol. I - Representação e Consciência da ExpressãoNas origens do Teatro está a capacidade de inventar personagens materiais e imateriais, de arquitetar narrativas que lancem às personagens o desafio de se confrontarem com situações e dificuldades que terão de ultrapassar. As religiões roubaram ao Teatro as personagens imateriais. Reforçaram os arquétipos em que tinham de se basear para conseguirem inventariar normas de conduta partilháveis que apaziguassem as ansiedades das pessoas perante o mundo desconhecido e o medo da morte.O Teatro ficou com as personagens materiais, representantes não dos deuses na terra, mas de seres humanos pulsionais, contraditórios, vulneráveis, que, apesar de perdidos nos seus percursos existenciais, procuram dar sentido às suas escolhas.Aos artesãos pensadores do Teatro cabe o desígnio de ir compreendendo a sua função ao longo dos tempos, inventando as ferramentas, esclarecendo as noções que permitam executar a especificidade da sua Arte. Não se podem demitir da responsabilidade de serem capazes de transmitir as ideias, as experiências adquiridas, às gerações vindouras, dando continuidade à ancestralidade de uma profissão que perdura. -
As Mulheres que Celebram as TesmofóriasEsta comédia foi apresentada por Aristófanes em 411 a. C., no festival das Grandes Dionísias, em Atenas. É, antes de mais, de Eurípides e da sua tragédia que se trata em As Mulheres que celebram as Tesmofórias. Aristófanes, ao construir uma comédia em tudo semelhante ao estilo de Eurípides, procura caricaturá-lo. Aristófanes dedica, pela primeira vez, toda uma peça ao tema da crítica literária. Dois aspectos sobressaem na presente caricatura: o gosto obsessivo de Eurípides pela criação de personagens femininas, e a produção de intrigas complexas, guiadas por percalços imprevisíveis da sorte. A somar-se ao tema literário, um outro se perfila como igualmente relevante, e responsável por uma diversidade de tons cómicos que poderão constituir um dos argumentos em favor do muito provável sucesso desta produção. Trata-se do confronto de sexos e da própria ambiguidade nesta matéria. -
A Comédia da MarmitaO pobre Euclião encontra uma marmita cheia de ouro, esconde-a e aferra-se a ela; passa a desconfiar de tudo e de todos. Entretanto, não se apercebe que Fedra, a sua filha, está grávida de Licónides. Megadoro, vizinho rico, apaixonado, pede a mão de Fedra em casamento, e prontifica-se a pagar a boda, já que a moça não tem dote. Euclião aceita e prepara-se o casamento. Ora acontece que Megadouro é tio de Licónides. É assim que começa esta popular peça de Plauto, cheia de peripécias e de mal-entendidos, onde se destaca a personagem de Euclião com a sua desconfiança, e que prende o leitor até ao fim. «O dinheiro não dá felicidade mas uma marmita de ouro, ao canto da lareira, ajuda muito à festa» - poderá ser a espécie de moralidade desta comédia a Aulularia cujo modelo influenciou escritores famosos (Shakespeare e Molière, por exemplo) e que, a seguir ao Anfitrião, se situa entre as peças mais divulgadas de Plauto. -
O Teatro e o Seu Duplo«O Teatro e o Seu Duplo, publicado em 1938 e reunindo textos escritos entre 1931 e 1936, é um ataque indignado em relação ao teatro. Paisagem de combate, como a obra toda, e reafirmação, na esteira de Novalis, de que o homem existe poeticamente na terra.Uma noção angular é aí desenvolvida: a noção de atletismo afectivo.Quer dizer: a extensão da noção de atletismo físico e muscular à força e ao poder da alma. Poderá falar-se doravante de uma ginástica moral, de uma musculatura do inconsciente, repousando sobre o conhecimento das respirações e uma estrita aplicação dos princípios da acupunctura chinesa ao teatro.»Vasco Santos, Posfácio -
Menina JúliaJúlia é uma jovem aristocrata que, por detrás de uma inocência aparente esconde um lado provocador. Numa noite de S. João, Júlia seduz e é seduzida por João, criado do senhor Conde e noivo de Cristina, a cozinheira da casa. Desejo, conflitos de poder, o choque violento das classes sociais e dos sexos que povoam aquela que será uma noite trágica. -
Os HeraclidasHéracles é o nome do deus grego que passou para a mitologia romana com o nome de Hércules; e Heraclidas é o nome que designa todos os seus descendentes.Este drama relata uma parte da história dos Heraclidas, que é também um episódio da Mitologia Clássica: com a morte de Héracles, perseguido pelo ódio de Euristeu, os Heraclidas refugiam-se junto de Teseu, rei de Atenas, o que representa para eles uma ajuda eficaz. Teseu aceita entrar em guerra contra Euristeu, que perece na guerra, junto com os seus filhos. -
A Comédia dos BurrosA “Asinaria” é, no conjunto, uma comédia de enganos equilibrada e com cenas particularmente divertidas, bem ao estilo de Plauto. A intriga - na qual encontramos alguns dos tipos e situações características do teatro plautino (o jovem apaixonado desprovido de dinheiro; o pai rival do filho nos seus amores; a esposa colérica odiada pelo marido; a cínica, esperta e calculadora alcoviteira; e os escravos astutos, hábeis e mentirosos) - desenrola-se em dois tons - emoção e farsa - que, ao combinarem-se, comandam a intriga através de uma paródia crescente até ao triunfo decisivo do tom cómico.
